Os guerrilheiros de Baton
Nem Obama, nem Twitter. Por trás da revolta no Irã estão as mulheres, vítimas do fundamentalismo religioso
Sérgio Augusto - O Estado de S.Paulo
Os analistas paranoicos ou conspiratórios excitam a imaginação, nos dão algumas aulas de história, mas, de modo geral, só isso. Paul Craig Roberts, por exemplo, viu o dedo do governo americano por trás dos protestos em Teerã. Ex-assessor de Ronald Reagan e habitual colaborador do site da CounterPunch, nos fez voltar a 1953, quando a CIA conspirou e conseguiu derrubar o primeiro ministro Mossadegh, que nacionalizara o petróleo iraniano, contrariando os interesses da Anglo-American Oil Company, e pôr em seu lugar o xaixá Reza Pahlevi. Roberts sabe das coisas, mas acho que desta vez subestimou a esperteza diplomática do governo Obama.
Mike Madden, na também eletrônica Salon, insinuou que jagunços do Hamas e do Hezbollah estariam ajudando os milicianos basiji na repressão às passeatas. Sem amigos, parentes e compatriotas na multidão indignada, os milicianos importados baixariam a lenha sem culpa nem piedade. Também já levantaram a hipótese de que a estudante Neda Agha Soltan não foi assassinada por um basiji e sim por alguém mancomunado com grupos estrangeiros interessados em desestabilizar o governo da dupla Khamenei-Ahmadinejad.
Embora duvide que o Hamas e o Hezbollah disponham de quadros para empréstimo ao exterior, Madden passou adiante a informação de um ativista iraniano que teria ouvido de um basiji, em Shiraz, a seguinte inconfidência: "Não só há árabes entre nós como eles estão ganhando mais do que a gente". Hospedados em hotéis e melhor armados, receberiam US$ 200 de diária e teriam ordens para agir com extrema violência. Se for verdade, cisão à vista nas forças de segurança iranianas. E aí, adeus à era Khamenei.
Mas não à Revolução Islâmica. Seus dissidentes mais graduados (Mir Hossein Mousavi, o candidato presidencial derrotado, os aiatolás Rafsanjani e Montazeri) são reformistas, querem apenas "modernizar" o regime tirá-lo das trevas fundamentalistas sem, no entanto, ceder às pressões internas e externas para transformar o Irã num Estado secular. Os xiitas acreditam na "renovação" do islamismo, os sunitas, não.
Já ninguém contestava a força preponderante das novas tecnologias (celulares inteligentes, blogs, microblogs, redes de relacionamento) na atual revolta no Irã, quando o jornalista e tradutor Hooman Majd, estudioso dos "paradoxos da modernidade iraniana", puxou a brasa para outra sardinha. "Não é a revolução do Twitter que estamos acompanhando", declarou numa entrevista à Salon, enriquecendo sua observação com dados curiosos sobre as deficiências da internet no país, o limitado número de iranianos conectados à rede e a inexistência de BlackBerrys na região.
Pronto, e lá fui eu atrás de outras fontes e outras forças preponderantes.
São as mulheres, apontou, em sua coluna no Washington Post, a comentarista Anne Applebaum, ainda sob o impacto da morte estúpida de Neda. Não tem Obama, nem Twitter, atrás dos protestos, o que há, mesmo, são anos de luta semiclandestina contra o obscurantismo ideológico da República Islâmica protagonizada, com destaque, pelas mulheres, as maiores vítimas do fundamentalismo religioso. Fechei com o jihad de batom, sem chador, nem burca.
Está fazendo 100 anos que o despótico Muhammad Ali Shah, monarca persa da dinastia Qajar, foi deposto por um exército de mujahedins secularistas. A tenra república persa, minada por saudosistas do antigo regime e pela inabilidade e incompetência de seus líderes, só se aguentou de pé dois anos, mas a vitória dos mujahedins ensinou (ou deveria ter ensinado) ao mundo uma lição: o fiel das crises políticas no Irã sempre foram suas forças de segurança e as manifestações de insegurança de seus potentados.
Como então explicar a derrocada de 1909? Simples: na era Qajar, os militares eram muito mal armados, treinados, remunerados, liderados, e muitos deles simpatizavam com os anseios republicanos e constitucionalistas dos rebeldes. Os revezes no Azerbaijão e em Mahabad não contam, pois os "autonomistas" locais foram ajudados pelo Exército da União Soviética. Reza Pahlevi montou um exército poderoso, mas que ele próprio se incumbiu de desorientar, ao tomar atitudes contraditórias, ora tíbias, ora autocráticas, e por fim cindir, ao humilhar e punir oficiais injustamente. O golpe de misericórdia foi a infiltração do exército por fiéis do aiatolá Khomeini, no final da década de 1970.
Fala-se muito, agora, em insatisfação e divisão entre os milicianos iranianos. Já em 1994, algumas unidades da Guarda da Revolução Islâmica se recusaram a usar a força para restabelecer a ordem em Qazvin. Na eleição presidencial de 1997, muitos dos guardiões armados do regime votaram no clérigo moderado Mohammad Khatami. Na eleição deste ano, 59 ex-oficiais do alto escalão tornaram pública sua predileção por Mousavi.
Para evitar surpresas desagradáveis, Khamenei providenciou, há tempos, a implantação de novas unidades paramilitares basiji, com soldados recrutados junto à população mais pobre, dependente de subsídios, empregos e orientação religiosa do governo. A questão é saber se e até quando a Guarda resistirá às pressões visíveis e invisíveis, às vacilações de Khamenei (já o viram "piscar" num sermão depois da morte de Neda), e, sobretudo, à guerrilha feminina, ao jihad de batom.
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