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sexta-feira, 15 de maio de 2009

Árabes estão aprendendo?

Mohamed El-Dakhakhny/The New York Times


Faça um teste: olhe rapidamente as fotos a seguir.

Elas aparentam já ter sido vistas milhares de vezes.

Há cidadãos árabes em manifestações de protesto, incendiando as ruas com sua fúria ancestral. Alguns levam cartazes em que aparece o nome do presidente George W. Bush – grande novidade, não? Tem até a tradicional manifestação de porta de embaixada, com a polícia tentando conter os ânimos e a obrigatória queima de bandeira do país visado. Alguns segundos de atenção a essas cenas, registradas no Líbano, em Catar e no Iraque, revelam sinais de um extraordinário mundo novo. O cartaz com o nome de Bush – na inesperada companhia do francês Jacques Chirac e de Kofi Annan, o secretário-geral da ONU – é de agradecimento pela moção internacional que estabelece a saída das tropas sírias do Líbano. Foi exibido numa das demonstrações populares que há um mês e meio se sucedem em Beirute, no momento a face mais visível das transformações em gestação no Oriente Médio. O protesto na foto maior aconteceu em Catar, pequeno e comparativamente comportado emirado do Golfo Pérsico, onde no último dia 19 um carro-bomba explodiu na frente de uma escola para estrangeiros matando um professor inglês. Numa região do mundo onde os assassinos que proclamam agir em nome de Deus costumam ser louvados como mártires, em Catar se fez um ato de repúdio ao terrorismo, permeado por frases singelas como: "Residentes estrangeiros, nós amamos vocês". No Iraque, o protesto não foi na porta da embaixada americana, mas na da Jordânia, acusada de facilitar a entrada no país das ondas de suicidas que, em nome da guerra aos Estados Unidos, trucidam diariamente civis iraquianos.

Fadi Al-Assaad/Reuters
Karim Sahib/AFP
A VOZ DAS RUAS
Protestos num mundo árabe com sinal invertido: contra o terrorismo, em Catar; em Bagdá, na frente de uma embaixada, mas da vizinha Jordânia; e de agradecimento
Omar Ibrahim/Reuters

Embora inéditas, essas cenas não significam que o Oriente Médio esteja ingressando em peso numa era democrática, que a opinião pública árabe – a voz das ruas, sempre tão antiamericana – tenha mudado dramaticamente ou que George Bush esteja a caminho de se tornar uma figura popular – bem, talvez só um pouquinho, em alguns lugares específicos, onde a intervenção dos Estados Unidos é vista como benéfica. Tampouco se supõe que o governo americano tenha se tornado um modelo de altruísmo, disposto a espalhar a mensagem democrática em nome da confraternização universal.

Os objetivos dos Estados Unidos são conhecidos e permanentes: garantir que o petróleo continue fluindo, que os países do Oriente Médio onde ele jorra como água não sejam engolfados pelo caos e que não produzam os fanáticos terroristas dispostos a atacar o império americano (acrescente-se que isso é de interesse vital de todo o nosso planeta petrodependente, onde o barril a 50 dólares já dói – e a 100, ou inacessível, prenuncia a derrocada da civilização). O 11 de Setembro comprovou que o terceiro item da lista estava dando terrivelmente errado. O status quo, de aliança com regimes autoritários mas confiáveis, que durante décadas havia garantido a estabilidade, não funcionava mais a contento? Vassoura nele, decidiram os dirigentes americanos, com irretorquível pragmatismo. E o que fazer para atacar o problema de fundo, o X da questão, o coração da matéria: o ódio visceral aos Estados Unidos, capaz de colocar jovens bem de vida e de alto nível de instrução, muitos residentes na Europa, expostos a todas as seduções da sociedade ocidental, na cabine de aviões seqüestrados, para se explodirem alegremente em Nova York? A idéia de usar a democracia como o melhor detergente antifanatismo foi aventada pelos intelectuais chamados neoconservadores que forjaram a nova política externa americana, ficou pairando no ar enquanto as bombas falavam mais alto no Afeganistão e no Iraque e agora ressurgiu, abraçada com entusiasmo pelo presidente Bush (piadinha de especialistas: ainda bem que ele não conhece nada de Oriente Médio, pois caso contrário não se animaria a propor mudanças lá).

Numa parte do mundo que habitualmente só produz notícias ruins, os resultados da mistura entre incentivos americanos aos movimentos pró-democracia e circunstâncias locais favoráveis parecem até bons demais para ser verdade. Os eleitores palestinos que votaram em Mahmoud Abbas sabem exatamente o que ele pensa: a violência produziu resultados negativos e o processo de acomodação com Israel, com todas as suas alucinantes dificuldades, tem de prosseguir. O fato de que Abbas diga isso em público e em particular, ao contrário da notória duplicidade de seu antecessor, Yasser Arafat, já parece suficientemente prodigioso, mas há mais. O Hamas, grão-patrocinador do islamismo militante, do terrorismo e da pura e simples extinção de Israel, quer participar do processo político, lançando candidatos para o Parlamento. Tem de correr para não ficar atrás de seu equivalente xiita, o Hezbollah, que discute com segurança profissional as tremendas mudanças em curso no Líbano. Atenção, as mudanças desfavorecem gravemente os militantes xiitas, ao enfraquecer seus patronos sírios, mas ninguém está falando, até agora, em atacar os opositores a bala, o que por tanto tempo foi a reação pavloviana obrigatória.

A abertura pode parecer timidíssima (a promessa de eleições presidenciais pluripartidárias, mas não muito, no Egito; modestas eleições municipais na Arábia Saudita e aceno em favor do voto feminino, num país onde as mulheres não podem nem sair de casa sozinhas). Esperar que todo o mundo árabe entre em uníssono na dança da abertura democrática seria de uma ingenuidade quase insana. As disparidades são imensas quando se fala de um universo de 304 milhões de pessoas (374 milhões se incluído o Irã, que não é árabe mas está na mesma zona geopolítica), em dezessete países, com um PIB de 680 bilhões de dólares, gerados por produtos que vão das tâmaras ao petróleo. Mas a similaridade de língua, religião e matriz cultural cria um efeito contágio considerável. Os "dedos azuis" dos iraquianos, que foram às urnas em janeiro apesar das ameaças terroristas, deixaram marcas profundas além-fronteiras – e criaram enormes dilemas político-religiosos para os xiitas militantes, confrontados com a mais angustiante das ironias: os odiados americanos estão ajudando seus irmãos de fé a chegar ao poder no Iraque. O alvo das atenções (e de boa dose de inveja) no momento é o Líbano, o mais bem equipado dos países árabes para o tipo de maré pró-democracia a que se assiste atualmente. "O que está acontecendo no Líbano tem impacto profundo no mundo árabe. É o começo de grandes mudanças", disse a VEJA o ex-presidente Amin Gemayel, que ocupou o cargo durante uma das fases mais pavorosas da guerra que castigou o país durante quinze anos. "O efeito chega até a Síria. A geração jovem de lá vê tudo o que está acontecendo aqui." Uma amostra do que está ocorrendo no Líbano encontra-se na reportagem a seguir, mas pode ser antecipadamente resumida em uma palavra: esperança. Alguém se lembra de qual foi a última vez em que ela se aplicou, com tanta propriedade, a um lugar do Oriente Médio?

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