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sexta-feira, 15 de maio de 2009

Assassinato em nome de Alá

Com o surgimento dos primeiros indícios de que a onda de terror nos Estados Unidos foi obra de radicais islâmicos, uma questão tornou-se inevitável: quem é essa gente que se suicida jogando aviões contra edifícios? Que se veste de bombas e se explode em supermercados e pizzarias de Israel? Que estoura carros recheados de explosivos contra muros de quartéis? Quem é, enfim, essa gente que se mata em nome de Alá?


Atualmente, calcula-se que exista em torno de 1,3 bilhão de muçulmanos no mundo, divididos em diversas correntes religiosas – e apenas uma parcela pequena está disposta a entregar a vida pela causa. São muçulmanos que integram ramificações extremistas da religião, como os sunitas do Afeganistão e os xiitas do Líbano, para os quais o suicídio em nome de Alá, normalmente cometido aos gritos de "Deus é grande", é uma forma suprema de entrega ao amor divino. A maioria dos muçulmanos, no entanto, repudia os ataques suicidas e os considera pecado extremo, uma ofensa contra Alá, na medida em que atenta contra o dom da vida – um dom divino.


"O primeiro equívoco comum entre ocidentais e cristãos é considerar todo islâmico um extremista suicida e, por extensão, um terrorista em potencial", adverte a historiadora Maria Aparecida de Aquino, da Universidade de São Paulo. O segundo equívoco, e até mais freqüente que o primeiro, é julgar que todos os muçulmanos são árabes, quando a maioria, na verdade, é formada por povos não-árabes. Somando-se um erro ao outro, produz-se uma generalização tão deformada quanto a de alguém que supõe que todos os católicos são irlandeses e, portanto, todos são radicais.


Há quarenta anos, 15% da população mundial era devota de Alá. Hoje, são quase 20%, e estima-se que, por volta de 2020, de cada quatro habitantes do planeta um será muçulmano. Essa explosão demográfica – em parte provocada pela proibição religiosa do uso de métodos contraceptivos – está devolvendo ao islamismo uma força considerável. Com o liberalismo religioso da maior parte do Ocidente, os muçulmanos também se espalham com alguma facilidade.


Só na Europa, berço da civilização cristã, existem 20 milhões de muçulmanos, e quase metade deles está instalada na Europa Ocidental. Há mesquitas até na Roma dos papas. Outro fator que emprestou maior visibilidade aos países islâmicos está em sua imensa riqueza estratégica: eles são donos das mais generosas reservas de petróleo do mundo. Entre os cinco maiores produtores de óleo do Oriente Médio (Irã, Iraque, Arábia Saudita, Emirados Árabes e Kuwait), o PIB conjunto quadruplicou nos últimos trinta anos – enquanto o PIB mundial apenas dobrou de tamanho.


O crescimento do rebanho e a fartura do petróleo, no entanto, produziram um barril de pólvora. Em geral, os regimes dos países islâmicos são ditaduras teocráticas e a riqueza não é distribuída, deixando a maior parte da população relegada à miséria.


É dentro desse caldeirão paradoxal que ressurgiu a força da religião, em especial depois da Revolução Islâmica no Irã, em 1979. "Num ambiente de carência social e autoritarismo político, a religião funciona como uma poderosíssima válvula de escape", define a historiadora Maria Aparecida de Aquino, da USP. Mas isso não é tudo. Até pouco tempo atrás, a América Latina também convivia simultaneamente com miséria e ditadura – e, no entanto, nunca se viram grupos extremistas de latino-americanos promovendo atos de terrorismo pelo mundo afora em nome de sua libertação econômica e política. Por que então alguns grupos de fanáticos islâmicos chocam o mundo com espetáculos inimagináveis de terror? A explicação sobre o que move esses extremistas, segundo alguns especialistas, talvez esteja num dado mais sutil: o choque de civilizações.


"Os Estados nacionais permanecerão como os atores mais poderosos no cenário mundial, mas os principais conflitos globais ocorrerão entre nações e grupos de diferentes civilizações", aposta o professor Samuel P. Huntington, especialista em estudos internacionais da Universidade Harvard e autor de um livro dedicado ao assunto. "O choque de civilizações será a linha divisória das batalhas do futuro." Nem todos os estudiosos do assunto concordam com a tese de Huntington, mas não há como negar que, num mundo cada vez menor, cada vez mais próximo, a religião também funciona como um instrumento de afirmação da identidade nacional.


E a globalização crescente é um processo que se desenrola sob o comando inequívoco do mundo ocidental – em especial, do império americano. As potências ocidentais não trilham sua trajetória segundo parâmetros da Bíblia, da fé cristã, dos ensinamentos de Jesus, mas, mesmo assim, elas acabam por se contrapor, culturalmente, aos países muçulmanos, muitos dos quais se pautam pelo Corão, pela fé islâmica, pelos ensinamentos de Maomé.


Com 1 400 anos de rivalidade, o cristianismo e o islamismo vêm alternando auges e colapsos. Fundado em 622 pelo profeta Maomé, o islamismo logo se lançou, com sucesso, à conquista de terras e almas. Por volta de 1 500, no entanto, os europeus cristãos partiram para a conquista do Oceano Atlântico, com os portugueses à frente, e acharam a rota marítima para as cobiçadas riquezas da Ásia – e aí começou o declínio da civilização islâmica.


Hoje, as potências ocidentais encontram-se no auge do poder. Os Estados Unidos, com sua incomparável pujança econômica, seu formidável poderio militar e sua vigorosa influência política e cultural sobre os destinos do mundo, representam o triunfo dos valores ocidentais – pelo menos aos olhos de fundamentalistas islâmicos, que, é sempre bom lembrar, são uma minoria entre os muçulmanos. Daí por que o terror da terça-feira não se esgotou na destruição de arranha-céus e na morte de inocentes. Pretendeu, sobretudo, cravar uma cimitarra no coração e no orgulho da maior potência ocidental.


Os extremistas, que enxergam o mundo pela oposição entre Jesus e Maomé, se ressentem da avassaladora influência ocidental sobre o planeta – nos costumes, nos hábitos de consumo, no modo de vida. Tanto que, em países dominados por radicais islâmicos, especialmente os talibans do Afeganistão, tudo o que lembra a cultura ocidental é proibido e severamente punido. Mas, de novo, isso não é uma regra. No Irã, há grandes anúncios de produtos ocidentais pelas ruas de Teerã, existem mulheres procurando cirurgiões plásticos, num sinal de vaidade antes inadmissível, e é muito expressivo o contingente feminino que freqüenta a universidade – uma raridade em algumas nações islâmicas que confinam a mulher aos limites do lar. "Há aspectos do capitalismo ocidental que são plenamente aceitos pelas populações muçulmanas", diz um diplomata brasileiro que serviu por oito anos no Líbano. "As cadeias de fast food, como o McDonald's, fazem sucesso do Marrocos ao Líbano," diz ele.


"Sem dúvida, o extremismo religioso está ligado às frustrações, principalmente entre os mais jovens, pois os países árabes têm economia fraca, analfabetismo e desemprego crescente", afirma Sharif Shuja, professor de relações internacionais da Universidade Bond, na Austrália. "Mas, além disso, o massacre de muçulmanos na Bósnia, na Chechênia, na Palestina e na Caxemira faz o mundo árabe imaginar que o Ocidente está contra ele", completa o especialista. A melhor maneira de reduzir o crescimento do extremismo talvez esteja na expansão democrática dos países islâmicos – tema ao qual as potências ocidentais têm dedicado pouca atenção.


A riqueza econômica do petróleo, por si só, não foi capaz de melhorar esse cenário. "Na verdade, ocorreu o contrário", analisa o professor Michael Hudson, da Universidade Georgetown. "Jordânia, Líbano, Marrocos e Palestina, que não têm reservas petrolíferas, hoje são países muito mais abertos que os ricos em petróleo, como Arábia Saudita, Iraque e Líbia." A exceção é o Irã, único islâmico rico que vive um acelerado processo de democratização.


A dificuldade de criar regimes democráticos em países árabes decorre de fatores históricos e culturais, mas se agrava hoje em dia em razão de dois aspectos. De um lado, existe um estado permanente de beligerância, pela vizinhança com Israel, o que tende a concentrar o poder nas mãos de um líder ou de um grupo. O constante clima de guerra, além disso, torna prioridade o fortalecimento do Exército, do serviço de inteligência, da polícia secreta, da guarda nacional, instituições que também servem para conter aspirações populares malvistas pelos dirigentes. De outro lado, a comunidade árabe é dividida pela glória e pela desgraça do petróleo. Quem tem senta-se sobre ele. Quem não tem usa sua influência junto aos países ricos em petróleo para garantir investimentos e ajuda externa. Assim, tanto os com-petróleo quanto os sem-petróleo, excessivamente amarrados à dependência de capital externo, tendem a ignorar as demandas internas por maior participação política.


Enquanto os nós não forem desfeitos, é possível que o extremismo e o fanatismo, embora restritos a grupos minoritários, sigam achando espaço para ensangüentar a história humana. Alertas contra isso é o que não falta. Quatro séculos antes de Cristo e dez séculos antes de Maomé, o grego Eurípedes já se insurgia contra o fundamentalismo, contra a prática de invocar os deuses para justificar guerras e carnificinas. Suas peças são um libelo de desmistificação dos sacerdotes, dos generais, dos políticos – enfim, dos poderosos de seu tempo. E investem contra o uso que essa elite fazia da adoração aos deuses como razão para praticar seus desmandos. Na peça Electra, Eurípedes denuncia o abuso que os homens fazem do culto a Apolo para cometer seus pequenos atos de terror. Em outra peça, Mulheres de Tróia, desmantela moralmente os políticos por promoverem guerras em nome dos deuses. Quem sabe a lição do grego ainda triunfe – e os radicais islâmicos deixem de voar contra edifícios.



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