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sexta-feira, 15 de maio de 2009

O que os terroristas querem?

Osama bin Laden e sua corte de fanáticos vivem na clandestinidade, enfurnados em cavernas do Afeganistão, envoltos numa aura de mistério, mas seus objetivos são bem claros. Basta consultar os escritos do milionário que virou o mais exaltado dos radicais islâmicos. Primeiro, ele pretende expulsar os militares americanos das bases que eles mantêm na Arábia Saudita, onde a mera presença de
não-muçulmanos é vista pelos fanáticos como uma profanação do solo santo onde nasceu o Islã. "Todos os esforços devem ser concentrados em combater, destruir e matar o inimigo até que, pela graça de Alá, esteja completamente aniquilado", esclarece Laden, em documento datado de 1996. Realizada a primeira missão divina, ele pretende partir para a segunda, de alcance mais amplo: unir todos os muçulmanos numa mesma comunidade, governada de acordo com a interpretação mais literal e estrita dos preceitos do Corão. Para isso, os governos dos países muçulmanos considerados corrompidos pela influência ocidental – ou seja, todos, com exceção do Afeganistão, onde já reina o fundamentalismo mais radical – devem ser varridos do mapa. Sem fronteiras nacionais, unificados sob esse governo ideal, chamado califado, os verdadeiros crentes se lançariam então rumo à etapa final – arrebatar o resto do planeta. "Chegará o tempo em que vocês desempenharão papel decisivo no mundo, de forma que a palavra de Alá seja suprema e as palavras dos infiéis sejam subjugadas", prometeu ele a seus seguidores. Em qualquer uma dessas etapas, o dever dos muçulmanos é empregar todas as armas possíveis para atacar os inimigos de Alá. O título do documento em que faz essa afirmação diz tudo: "A Bomba Nuclear do Islã".


Parece coisa de uma mente delirante, dos gênios do mal caricaturados no cinema ou nas histórias em quadrinhos. A forma aberrante de fanatismo religioso pregada por Laden, porém, tem raízes bem fincadas na história da religião muçulmana, constantemente marcada por esse desejo de mergulhar na fonte original, de beber da palavra mais pura do Corão, de reviver um passado mítico. Esse movimento é chamado, genericamente, de fundamentalismo e está entranhado no próprio código genético do Islã, religião que tem uma visão totalizante do mundo e apresenta um modelo para tudo o que se faz em qualquer das esferas da vida, públicas ou privadas. Na ótica fundamentalista, a união da religião e do Estado é um ideal ordenado por Deus – e sua separação, uma invenção ocidental que provocou o declínio do mundo muçulmano. Para retornar ao "verdadeiro Islã", todas as sociedades muçulmanas devem se unir numa comunidade única, chamada ummah. Tudo isso sob o signo da charia, a lei corânica tal como foi estabelecida há quase 1.400 anos, com castigos coerentes com a sociedade tribal da época: amputação de membros para os ladrões, decapitação para assassinos ou hereges, apedrejamento para as adúlteras.


O modelo a ser seguido é o que vigorou no tempo dos quatro califas, como são chamados os primeiros sucessores diretos do profeta Maomé. Esse passado idílico, um ideal comum às correntes messiânicas de várias religiões, obviamente está mais na imaginação dos fundamentalistas. Na verdade, três dos quatro califas foram assassinados nas violentas disputas sucessórias – a morte do último deles, Ali, produziu a mais conhecida corrente minoritária da religião muçulmana, os xiitas. "Eles dizem que houve um momento na História em que a comunidade social e seus líderes foram perfeitos. Tudo, evidentemente, é uma interpretação muito pessoal do que apresentam como uma verdade eterna", explica o estudioso das religiões Martin E. Marty, da Universidade de Chicago. "No fundo, todas as religiões querem ser absolutamente puras e se consideram o único instrumento de Deus. Nesse anseio, os fundamentalistas se isolam, erguem barreiras psicológicas para se manter a distância. Dessa forma, o mundo fica dividido em dois: os seus seguidores e seus inimigos."


Uma comparação que ajuda a entender a mentalidade fundamentalista é com a Igreja Católica na fase em que se encontrava quando tinha a mesma "idade" do Islã hoje. Naquela época, os padres da Santa Inquisição queimavam pessoas que não acreditassem em dogmas católicos. Torturavam e matavam suspeitos de crimes como bruxaria. Qualquer idéia inovadora era condenada, mesmo que fosse uma idéia científica defendida por pesquisadores de talento, como Galileu Galilei, que sofreu perseguição no século XVII por ter afirmado que a Terra girava em torno do Sol. Os historiadores também coincidem ao apontar as razões desse movimento de refluxo: em comparação com seu passado glorioso, os países islâmicos vivem hoje um período de decadência. O Ocidente cristão, com o qual conviveram e combateram ao longo dos séculos em pé de igualdade, às vezes até de superioridade, superou-os vastamente em matéria de progresso material, científico, administrativo e tecnológico. A primeira organização fundamentalista moderna, a Fraternidade Muçulmana, foi criada em 1928 pelo xeque Hasan al-Banna num Egito humilhado pelo colonialismo britânico. Também ganharam contornos de males a ser combatidos as liberdades individuais, a emancipação das mulheres, as mudanças nos padrões familiares e outras transformações que se sucederam nas sociedades ocidentais. "Aterrorizados por sua visão do mundo contemporâneo, os integristas procuram abrigo e proteção num passado que nunca existiu da forma como imaginam hoje", analisou o iraniano Amir Taheri, autor de dois livros sobre o "terror sagrado".


Chegamos, assim, àquilo que distingue o fundamentalismo em sua vertente mais extremada: o recurso à violência como meio não só legítimo como obrigatório. Ancorados em textos do Corão ou ensinamentos do profeta e seus seguidores, evidentemente interpretados da maneira mais literal, os fundamentalistas aperfeiçoam há séculos uma teoria da violência total. "Aqueles que ignoram tudo do Islã pretendem que ele recomende não fazer a guerra. São insensatos. O Islã diz: 'Matem todos os infiéis da mesma maneira que eles os matariam'", escreveu um dos aiatolás que lançaram as bases da revolução fundamentalista que derrotou o regime do xá Reza Pahlevi no Irã. O aiatolá complementa: "Aqueles que estudam a guerra santa islâmica compreendem por que o Islã quer conquistar o mundo inteiro. Todos os países subjugados pelo Islã receberão a marca da salvação eterna. Pois eles viverão sob a luz da lei celestial". Quando Osama bin Laden diz que "matar americanos e seus aliados, civis e militares, é um dever individual de todo muçulmano que tenha condições de fazer isso, em qualquer lugar onde seja possível fazer isso", ele está seguindo exatamente o mesmo raciocínio.


É interessante notar que Laden estabeleceu como objetivo número 1 o seu próprio país, a Arábia Saudita. Quer livrar o território saudita da presença contaminadora de militares americanos. A ironia é que na Arábia Saudita já vigora o mais severo fundamentalismo. É um dos poucos países islâmicos onde o Corão é a Constituição e as normas punitivas islâmicas ocupam o lugar do Código Penal. O Irã xiita, que tem relações gélidas com as demais nações muçulmanas, e o Sudão também formam nesse grupo. A unificação e a independência da Arábia Saudita aconteceram sob a bandeira de uma seita chamada wahabita, cujo radicalismo é reproduzido agora no Afeganistão do Talibã. Além de cobrir as mulheres de panos dos pés à cabeça, sem deixar uma única nesga de pele à mostra, os wahabitas têm horror a tudo que lembre remotamente diversão – música, cinema, teatro, até vasos de flores a certa altura foram proibidos. O rei Faisal foi assassinado em 1975 por um sobrinho por ter tomado uma medida muito liberal: depois de um longo debate teológico, liberou a televisão. Bebidas alcoólicas rendem chicotadas em praça pública, a polícia religiosa anda pela rua controlando qualquer desvio. Até uma princesa da família reinante foi executada, por adultério. Pois todo esse rigor, para Laden, não vale nada. Ao permitir que militares americanos se instalassem no país (para proteger os sauditas, e todo seu petróleo, da sanha de Saddam Hussein), a monarquia wahabita se transformou em traidora da fé e merecedora de todos os castigos. É para arrancar os americanos do solo saudita, reverenciado como o berço do profeta Maomé e da revelação divina, que Laden iniciou a campanha de ataques terroristas que culminou com o massacre de Manhattan. O que pode vir em seguida?


Operações espetaculares como os atentados contra os Estados Unidos, estarrecedores tanto por sua magnitude quanto pelas conseqüências em todo o planeta, podem criar a impressão de que o mundo está à beira de ser engolfado pelo fundamentalismo mais ensandecido, com massas de seguidores do profeta tomando o poder de assalto. Na verdade, as duas grandes ondas de apoio popular aconteceram em 1979, com a revolução iraniana, e 1991, quando os integristas ganharam, mas não levaram, as eleições na Argélia. Nos outros países muçulmanos onde existe algum tipo de teste das urnas, os partidos fundamentalistas costumam ter em torno de 20% dos votos. Inseridos no jogo político, acabam envolvidos em projetos nacionais. Isso é exatamente o oposto do que prega o fundamentalismo, que "rejeita violentamente não só o nacionalismo, mas a própria idéia de construir um Estado islâmico num só país", segundo analisa o pesquisador francês Olivier Roy, estudioso do tema.


Na visão de Roy, o fundamentalismo "clássico" está em refluxo. Desde 1997, quando aconteceu o massacre dos turistas estrangeiros em Luxor, não acontecem atentados de grande impacto no Egito. A situação acalmou-se na Argélia, a violência brutal dos atentados palestinos contra israelenses acontece contra o pano de fundo de uma luta nacional. E, ironia das ironias, o Irã dos aiatolás tem agora uma convergência de interesses com os Estados Unidos no combate aos talibãs e seu aliado saudita. Para o pesquisador, Laden é uma aberração até mesmo no contexto do fundamentalismo. Seus seguidores, arrancados do grupo familiar e da sociedade de origem, desenraizados e aculturados, "fazem um retorno individual a um Islã abstrato e desligado da realidade social". Reside aí, justamente, seu ponto fraco. Como se diria no jargão de uma outra doutrina fundamentalista, já extinta, eles se afastaram das bases – e por isso estão condenados ao fracasso. Queira Alá que seja verdade.

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