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quinta-feira, 2 de julho de 2009

Eruv, o jeitinho judaico



O recente pronunciamento de Bento XVI que situa o segundo casamento como uma praga social ainda vai dar muito o que falar. Um cronista católico pretendeu que Sua Santidade, ao dizer piaga, pretenderia dizer chaga, sentido que a palavra também admite em italiano. Revelou-se mais papista que o papa: a tradução para o português da bula papal falava claramente em praga. Praga ou chaga, seja como for, o documento condena quem um dia fez uma escolha que não deu certo e busca numa segunda união aquela felicidade à qual todo ser humano tem direito. “Não é bom que o homem esteja só”, disse Jeová no Gênesis. O mesmo não pensa a Igreja. Se um católico não acertou da primeira vez, deve permanecer só, irremediavelmente só, para o resto de seus dias. A punição, em verdade, é anódina, quase simbólica: privação da comunhão. Como se estivesse preocupado em beber sangue e comer carne quem quer apenas um corpo para afagar.

Bento nega o sacramento da comunhão a divorciados que se tenham casado de novo. Àqueles cujo casamento fracassou, o papa aconselha a “esforçarem-se por viver a sua relação segundo as exigências da lei de Deus, como amigos, como irmão e irmã; deste modo poderão novamente abeirar-se da mesa eucarística”. Ou seja, nada de sexo. E este é o nó górdio que até hoje a Igreja não ousou desatar.

Toda a doutrina da Igreja, desde os apóstolos até o Bento, condena com veemência os ditos prazeres da carne. Só podem existir dentro do matrimônio. “É melhor casar do que abrasar-se”, dizia Paulo, que só via como mitigar o abrasamento com o casamento. “Para evitar toda impudicícia, que cada homem tenha sua mulher e cada mulher seu marido”. A eleição de uma virgem como modelo de todas as virtudes é sintomática: a mulher perfeita não pode ter sexo. Mais ainda, além de virgem é mãe. Ou melhor: apesar de mãe, é virgem. Se é difícil para a razão humana aceitar esta aporia, ela é enfiada goela abaixo através do dogma. Roma locuta, causa finita. É dogma e fim de papo.

Fossem só as restrições ao segundo casamento... Mas não. É proibido o sexo antes do casamento. Mesmo no casamento, o sexo não pode ser apenas prazer, mas deve ter como finalidade a procriação. Mais ainda, sexo só pode ser entre homem e mulher. Como se sexo entre homem e homem e entre mulher e mulher não fosse também prazeroso. E nisto reside o mal: para a Igreja, a finalidade do sexo não é o prazer. Portanto, nada de anticoncepcionais. Muito menos preservativo. Preservativo previne a Aids? Não importa. Que morram as gentes. Profilaxia é pecado.

Os sacerdotes devem fazer voto de castidade. Isto é, estão mortos para a vida sexual. Em princípio, são castrados para a eternidade. Costuma-se dizer que a carne é fraca. Pelo contrário. A carne é forte. Tão forte que a maioria dos padres que abandona o sacerdócio o faz para casar-se. E os que não abandonam, buscam refrigério ao abrasamento nos coroinhas e meninos da paróquia. Não foi por falta de aviso. Na Epístola aos Romanos, Paulo acusa os pagãos: “Os varões, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, varão com varão, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a devida recompensa do seu erro”. Para Paulo, todo amor é pecaminoso, a carne é contrária ao espírito e o casamento é um remédio para a fornicação. Isto é, um mal menor.

Não sei o que pensam hoje os padres da masturbação. Em meus dias de guri, era pecado mortal e passaporte para o inferno. E lá iam os coitados dos adolescentes, enrubescidos, para o confessionário, contar ao padre suas práticas solitárias. A Igreja instalava uma maquininha de tortura na cabeça de cada crente e deixava a ele a iniciativa de acioná-la. O confessor, excitado, com voz sussurrante, queria saber: quando? Onde? Como? Chegou até o final? Quantas vezes? Os confessores foram, sem dúvida alguma, os precursores do sexo por telefone.

No fundo, o pecado bíblico de Onan. Ocorre que Onan não se masturbava pelo prazer de masturbar-se. Encarregado, conforme os costumes da época, de dar descendência a seu irmão morto, sabendo que a posteridade não seria a sua, preferia jogar sua semente na terra. Não era uma questão de prazer, mas de herança. Jeová não gostou e também o fez morrer.

Ortodoxia cansa. As gerações contemporâneas não aceitam mais regras elaboradas há milênios. Há muitas pessoas que crêem em Deus, mas não conseguem admitir um deus que proíbe o prazer. Se a virgindade de Maria é um dogma para a Igreja, a castidade não é. Castidade é palavra que não ocorre uma única vez na Bíblia. Segundo Guy Bechtel, o essencial da teoria cristã sobre a carne não vem de Jesus. Foi elaborada pelos diferentes pais da Igreja e particularmente por Santo Agostinho. Algum dia, algum papa terá de usar de suficiente jogo de cintura sob pena de a Santa Madre submergir na História.

Comentei há pouco as absurdas prescrições dos judeus ortodoxos durante o shabat. Entre elas, as de não acender luzes, não carregar objetos, nem mesmo a chave da porta, não apertar o botão do elevador, não cozinhar, não abrir a torneira de água quente, não rasgar papel higiênico, e por aí vai. Interdições sem sentido algum, decorrentes das filigranas teológicas elaboradas pelos rabinos a partir de textos de três mil anos atrás, quando não havia luz elétrica, nem chave de porta, nem elevador nem botão de elevador, muito menos torneira de água ou papel higiênico. Os rabinos, dizia, hoje estão preocupados em como fazer com que os adolescentes entendam a proibição ao celular e à internet aos sábados.

Os judeus, em sua sabedoria milenar, já encontraram a solução. Escreve-me uma amiga da Finlândia:

Você conhece o conceito de eruv? Esse é de rolar de rir. O eruv é uma cerca, real ou simbólica, que cria uma área dentro da qual são permitidas certas atividades que as leis judaicas proíbem. O eruv pode envolver uma casa, um jardim, ou até um bairro inteiro. Foi o jeito que inventaram de aplacar os rabinos ortodoxos e aliviar as restrições do shabat ao mesmo tempo. Um amigo judeu americano (judeu reformista - tão diferente dos ortodoxos como eu e você) contou que, outro dia, o eruv de sua cidade, Sharon, em Massachusetts, rompeu-se. Os fanáticos estavam em polvorosa. Outro amigo reformista diz que o preço dos imóveis dentro dos eruvin de Nova York é astronômico. Parece aquela história dos muçulmanos segundo a qual beber álcool dentro de casa, com as cortinas fechadas, não faz mal, porque Alá não está vendo”.

A ortodoxia judaica cria sérios problemas aos próprios crentes. Empurrar em público um carrinho de bebê, uma cadeira de rodas e mesmo carregar nas mãos o livro de orações são atos proibidos no dia dedicado a descansar. Não se pode nem mesmo carregar um lenço no bolso. Azar seu, se estiver resfriado. Dentro do eruv, estes preceitos estão dispensados, já que a área delimitada é considerada tão privada como o lar. Em Londres, em 2002, foi instalado um eruv, limitado por 84 postes ligados por fios de náilon. A área cobre um perímetro de 17 km. Existem hoje eruvin não só em Israel, como também Austrália, Bélgica, França, Itália, África do Sul, Estados Unidos e até mesmo em Gibraltar. O de Estrasburgo abrange o Parlamento Europeu e o Tribunal de Direitos Humanos. O de Washington, a Casa Branca.

Leio ainda que há uma discussão entre rabinos sobre a condição de Manhattan. “Limites topográficos naturais como rios, penhascos e ravinas podem formar um ou mais lados legítimos de um eruv. Por esta razão, é possível considerar, segundo a perspectiva talmúdica, toda a ilha de Manhattan um eruv”.

Gostei da malandragem rabínica. Uma zona franca onde se pode burlar a ortodoxia. Bem que a Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana poderia ter mais jogo de cintura e criar alguns eruvin católicos cristandade afora, onde se pudesse pecar com gosto e sem remorso.

Se os milenares seguidores do Pai encontraram um jeitinho, porque não os do Filho?

Fonte: Baquete

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